Despertar Ambiental nas Décadas de 1960-1970

As preocupações ambientais modernas ganharam força a partir do final da década de 1960, quando desastres ecológicos e a poluição industrial chamaram a atenção do público e de governantes para os limites do planeta. Até então, predominava o paradigma desenvolvimentista que via a degradação ambiental como um “mal necessário” ao progresso econômico. A publicação de Silent Spring (1962) por Rachel Carson, denunciando os efeitos de pesticidas, e eventos como grandes vazamentos químicos e episódios de poluição do ar (por exemplo, o smog letal de Londres em 1952) impulsionaram uma mudança de percepção global. Nesse contexto, emergiu a consciência ecológica científica: a compreensão de que os recursos naturais são finitos e de que as atividades humanas podem causar danos irreversíveis ao meio ambiente e à saúde pública.

Os anos 1970 marcam o início de um novo paradigma ambiental. Conferências internacionais – como a pioneira Conferência da UNESCO em 1968 sobre O Homem e a Biosfera e a Conferência da ONU em Estocolmo (1972) – buscaram “conciliar a economia com a conservação do meio ambiente, mantendo o equilíbrio dos ecossistemas e a saúde da população”. Essa necessidade de conciliação representou uma mudança paradigmática: de um enfoque puramente antropocêntrico e setorial para uma visão integrada que reconhece a interdependência entre crescimento econômico e proteção ambiental. No Brasil, a legislação começou a refletir essa guinada. O novo Código Florestal de 1965, por exemplo, inovou ao reconhecer as florestas como bens de interesse comum a todos os habitantes, indo além da visão meramente patrimonial dos recursos naturais. Ainda que as normas dos anos 60-70 fossem pontuais e fragmentadas, já indicavam maior preocupação com a qualidade ambiental e não apenas com o valor econômico da natureza.

Esse primeiro “despertar” ambiental teve nuances. Setores do movimento ecológico adotaram posturas preservacionistas rígidas – uma filosofia de “não me toque” inspirada na ecologia profunda dos anos 60, que priorizava a proteção da natureza mesmo em detrimento do desenvolvimento humano. Paralelamente, correntes de crítica social passaram a instrumentalizar a causa ambiental como trincheira ideológica (anticapitalista, por exemplo) em debates políticos. Apesar dessas divergências, o legado dos anos 60-70 foi a implantação de um paradigma científico-ambiental nascente, apoiado em estudos de ecologia e toxicologia, que legitima a criação de leis ambientais baseadas em evidências científicas (como dados sobre poluição, contaminação química e impactos nos ecossistemas). Em suma, o período lançou as bases de um Direito Ambiental autônomo, com foco inicial no combate à poluição e na conservação de recursos naturais essenciais.

Consolidação e Sustentabilidade: o Paradigma dos Anos 1980-2000

Nas décadas de 1980 e 1990, o Direito Ambiental se consolidou juridicamente, embasado por um novo paradigma científico e normativo: o do desenvolvimento sustentável. A introdução desse conceito – popularizado pelo Relatório Brundtland de 1987 – estabeleceu um “contrato entre gerações”, definindo desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem as suas próprias necessidades”. Essa ideia-força incorporou achados das ciências ecológicas sobre limites planetários, unindo-os a preocupações sociais e econômicas. Em outras palavras, a partir dos anos 80 emergiu a compreensão de que progresso econômico e justiça social precisam caminhar junto com a proteção ambiental, rejeitando a exploração indiscriminada dos recursos naturais.

No Brasil, essa mudança paradigmática traduziu-se em marcos legais pioneiros. A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) foi emblemática ao definir meio ambiente de forma sistêmica, como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Com essa definição, o ordenamento passou a enxergar o meio ambiente como um sistema ecológico integrado, superando a visão fragmentada anterior. A lei de 1981 também instituiu instrumentos de gestão ambiental (como o licenciamento ambiental e o Estudo de Impacto Ambiental) e reconheceu formalmente a importância vital do meio ambiente equilibrado para a existência humana e o bem-estar coletivo. Muitos doutrinadores consideram essa lei o nascimento do Direito Ambiental brasileiro enquanto ramo autônomo.

Em 1988, a Constituição Federal elevou de vez o patamar do paradigma ambiental. A chamada “Constituição Verde” dedicou o artigo 225 integralmente ao meio ambiente, consagrando-o como direito difuso de todos, essencial à qualidade de vida, e impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para presentes e futuras gerações. Esse dispositivo constitucional cristalizou princípios científicos e éticos modernos: o reconhecimento de que a saúde dos ecossistemas é condição para a dignidade humana e de que há uma dimensão intergeracional na tutela ambiental. Além disso, os anos 90 viram o Brasil sediar a Conferência Rio-92, na qual princípios como o da precaução, do poluidor-pagador e da participação comunitária foram reafirmados globalmente e depois incorporados à legislação infraconstitucional. Leis brasileiras importantes desse período – como a Lei da Ação Civil Pública (1985) e a Lei de Crimes Ambientais (1998) – refletiram o paradigma de que proteger o meio ambiente é parte integrante do desenvolvimento do país. Em suma, ao final do século XX prevalecia um consenso normativo: desenvolvimento sustentável passou a guiar políticas e leis ambientais, buscando equilibrar os eixos ecológico, social e econômico do progresso humano.

Desafios do Século XXI: Do Antropocentrismo ao Ecocentrismo

No início do século XXI, embora o paradigma do desenvolvimento sustentável estivesse oficializado, novos desafios científicos e crises ambientais globais pressionaram por uma atualização de perspectiva. A emergência do conceito de Antropoceno – a era geológica marcada pela influência humana no sistema planetário – evidenciou que a degradação ambiental atingiu escala crítica (mudanças climáticas aceleradas, perda maciça de biodiversidade, poluição ubiquamente disseminada). A ciência climática e a ecologia avançaram ao ponto de demonstrar de forma inequívoca a interdependência entre a atividade humana e os sistemas naturais do planeta. Esse acúmulo de evidências científicas vem catalisando um paradigma ecossistêmico: reconhece-se o ser humano como parte integrante da comunidade biótica da Terra, sujeito às “leis da Natureza” tal como quaisquer outras espécies. Valores éticos de matriz ecológica, que ganharam força desde os anos 60, agora impulsionam propostas mais ousadas – como o biocentrismo e o reconhecimento de direitos da Natureza – buscando ampliar os horizontes do Direito Ambiental. Em nível internacional, exemplos não faltam: a Constituição do Equador (2008) e leis em vários países já atribuem personalidade jurídica a elementos naturais (rios, florestas), rompendo com o paradigma estritamente antropocêntrico.

No Brasil, essa discussão ecocêntrica também ecoa em alguns círculos jurídicos e decisões judiciais. Ministros do STF, ao julgarem temas ambientais, reconheceram explicitamente que a Constituição de 1988 comporta uma leitura biocêntrica, ao conferir valor intrínseco à fauna e vedar práticas cruéis contra animais. Essas posições sinalizam a compreensão de que a dignidade não é atributo exclusivo da pessoa humana, mas alcança outras formas de vida – uma clara evolução do paradigma científico-jurídico rumo ao ecocentrismo.

Por outro lado, o século XXI também trouxe o desafio de tornar a gestão ambiental mais eficaz e racional frente a problemas urgentes. Apesar de avanços legais, a contínua degradação – ilustrada por desastres como o rompimento de barragens de rejeitos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019) – expôs deficiências na aplicação do Direito Ambiental antropocêntrico tradicional. Observou-se que a hipertrofia burocrática de instrumentos como o licenciamento ambiental nem sempre se traduziu em prevenção de tragédias, ao passo que criou entraves para iniciativas sustentáveis. De fato, críticos apontam que o licenciamento se tornou “a única peça de governança ambiental”, inflando-se de exigências e etapas que nem sempre agregam proteção efetiva, mas podem paralisar projetos importantes. Muitos empreendimentos de baixo impacto sofrem com morosidade e insegurança jurídica, enquanto impactos graves nem sempre são evitados – um sintoma de paradigma desatualizado, ainda preso a formalismos, conflitos de competência e disputas ideológicas. Nesse contexto, parte do movimento ambiental se dividiu entre visões: uma parcela mantém postura conservacionista inflexível (fruto da escola ecológica dos anos 60), e outra adota um viés politico-ideológico que utiliza a causa ambiental para embates econômicos mais amplos. Ambas as abordagens extremas têm dificuldade em dialogar com a ciência e com as necessidades reais da sociedade, gerando polarização em torno das políticas ambientais.

Diante disso, torna-se imperativa uma atualização do paradigma científico do Direito Ambiental. Essa atualização inclui reconciliar o progresso tecnológico e econômico com as metas ambientais de forma pragmática e baseada em evidências. Significa também incorporar as novas ferramentas científicas e tecnológicas disponíveis para monitoramento e gestão ambiental (sensoriamento remoto, big data, inteligência artificial) e abraçar a interdisciplinaridade – unindo ecólogos, climatólogos, economistas, engenheiros e juristas na construção de soluções. O objetivo é superar tanto o antropocentrismo curto-prazista quanto um ecocentrismo retórico desconectado da ação: é preciso um paradigma de cooperação entre sociedade e natureza, no qual o Direito Ambiental seja simultaneamente robusto na proteção ecológica e ágil/inovador na sua implementação. Essa visão atualizada reforça que as “leis dos homens” devem alinhar-se às “leis da natureza” para garantir a sobrevivência e a qualidade de vida das próximas gerações. Em síntese, o século XXI clama por um Direito Ambiental renovado, capaz de enfrentar a emergência climática e ecológica sem descuidar do desenvolvimento humano – em outras palavras, um novo pacto científico-jurídico socioambiental.

Novo Marco e a Atualização Paradigmática: a Lei Geral de Licenciamento Ambiental

Um exemplo concreto desse esforço de atualização paradigmática é a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (LGLA), aprovada em 2025 após décadas de debates. Essa legislação (originada do PL 2159/2021, discutido desde 2004) foi concebida para modernizar e racionalizar o principal instrumento da política ambiental brasileira – o licenciamento – à luz das necessidades e conhecimentos atuais. Trata-se de um marco legal que busca superar o modelo anterior, considerado caótico e ultrapassado, no qual havia um “cipoal” de aproximadamente 27 mil normas esparsas e procedimentos díspares em todo o país. Em lugar dessa fragmentação, a LGLA estabelece diretrizes unificadas e claras, aumentando a segurança jurídica tanto para a proteção ambiental quanto para os empreendedores.

Sob a ótica do paradigma científico, a Lei Geral do Licenciamento valoriza dados técnicos e critérios objetivos para a tomada de decisão. Um dos propósitos centrais é diferenciar os empreendimentos pelo seu potencial de impacto, simplificando os processos para atividades de baixo impacto e exigindo rigor compatível para as de alto impacto, em consonância com o princípio da proporcionalidade. Por exemplo, a LGLA criou modalidades de licença ambiental mais ágeis: a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), uma espécie de autodeclaração responsável para projetos de pequeno e médio porte com baixo potencial poluidor. Com isso, evita-se exigir Estudos de Impacto Ambiental complexos para empreendimentos simples, liberando recursos técnicos dos órgãos ambientais para fiscalizar e analisar projetos realmente significativos. Importante notar que o Senado aprimorou essa licença simplificada impondo limites – somente casos de baixo/médio impacto, sem prever desmatamento de vegetação nativa, e com obrigação de apresentar relatório técnico (RCE) – garantindo que a simplificação não comprometa a proteção essencial. Já para obras estratégicas de interesse nacional (por exemplo, energéticas ou de infraestrutura logística), foi instituída a Licença Ambiental Especial (LAE), com rito unificado e prazo máximo de um ano, de modo a viabilizar projetos prioritários sem tantas etapas burocráticas. Essa inovação incorpora a ideia de licenciamento em fase única para empreendimentos considerados urgentes, condicionando-os a parâmetros técnicos pré-definidos e acompanhamento especializado.

Ao mesmo tempo, a nova lei fortalece aspectos da proteção ambiental onde o sistema anterior era omisso. Prevê, por exemplo, aumento de pena para quem operar atividade poluidora sem licença (passando a até 2 anos de detenção, antes era 6 meses), e deixa claro que autoridades licenciadoras responderão criminalmente apenas se agirem com dolo (intenção) em caso de conceder licença irregular. Isso protege o servidor bem-intencionado e inibe a corrupção, criando um ambiente de responsabilização equilibrada. Ademais, a LGLA harmoniza competências entre União, estados e municípios – um tema antes nebuloso – seguindo os critérios da Lei Complementar 140/2011 e evitando conflitos sobre quem licencia o quê, especialmente em atividades em divisa de entes federativos. Em síntese, a lei atualiza o paradigma do licenciamento de “um controle pelo controle” para um controle ambiental inteligente, com foco na essência (resultados ambientais) e não apenas na forma (procedimentos).

Os próprios especialistas destacam o caráter positivo e necessário dessa atualização. O projeto tramitou por 21 anos colhendo contribuições de órgãos ambientais, setores produtivos, academia e sociedade civil, o que resultou em uma redação de consenso possível, equilibrando diferentes interesses. Segundo analistas, a LGLA promove o tripé da sustentabilidade (ambiental, social e econômico) de forma concreta, ao tornar o licenciamento mais previsível e eficiente sem abdicar dos critérios técnicos e da proteção ao meio ambiente. Ela incorpora o uso de tecnologia – como bancos de dados ambientais unificados, protocolos digitais e até Inteligência Artificial – para eliminar redundâncias (evitando repetição de estudos para projetos similares) e agilizar análises. Durante a pandemia de 2020, por exemplo, constatou-se a importância de ferramentas online (a exemplo de audiências públicas virtuais) para não paralisar processos – lições que influenciaram a modernização contida na nova lei.

Ao valorizar positivamente a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, reconhece-se que ela representa uma mudança de paradigma no Direito Ambiental brasileiro. Se o antigo modelo refletia um paradigma muitas vezes marcado pela desconfiança mútua (entre desenvolvimentistas e ambientalistas) e pelo embate judicial frequente, o novo modelo procura construir confiança através de regras claras e coerentes com a ciência. Busca-se um “equilíbrio entre os eixos ambiental, social e econômico” nas decisões de licenciamento, conforme preconizado pelo desenvolvimento sustentável, agora com ferramentas legais atualizadas para efetivar esse equilíbrio na prática. Em outras palavras, a LGLA visa mostrar que é possível proteger o meio ambiente e, simultaneamente, permitir o desenvolvimento responsável – rompendo com a falsa dicotomia de que proteção ambiental é obstáculo ao crescimento. Essa harmonização era algo almejado desde as primeiras conferências ambientais nos anos 70, mas somente com um arcabouço normativo moderno e integrado espera-se concretizá-la de maneira mais eficaz.

Conclusão

Ao longo dos últimos sessenta anos, o Direito Ambiental evoluiu acompanhando – e muitas vezes antecipando – mudanças nos paradigmas científicos e nas demandas da sociedade. Partindo de quase nenhuma legislação ambiental nos anos 60, construiu-se um corpo normativo robusto fundamentado na ciência ecológica e em princípios como prevenção e precaução. Cada fase histórica trouxe um novo olhar: dos alertas iniciais sobre poluição e conservação, passando pelo consenso em torno do desenvolvimento sustentável no final do século XX, até as atuais discussões sobre direitos da natureza e emergência climática. A história do Direito Ambiental é marcada por quebras de paradigmas científicos que deixaram “velhos paradigmas pelo caminho” em prol de novos entendimentos mais abrangentes.

Em 2025, diante de problemas ambientais complexos e urgentes, torna-se evidente a necessidade de mais uma atualização de paradigma. Essa atualização não significa abandonar os princípios consagrados, mas sim aperfeiçoá-los e aplicá-los com as ferramentas contemporâneas e com a mentalidade de cooperação. A Lei Geral do Licenciamento Ambiental exemplifica esse movimento ao modernizar um instrumento-chave: ela procura alinhar a legislação às “leis imutáveis e universais da Natureza”, no sentido de respeitar os limites ecológicos, ao mesmo tempo em que ajusta os processos humanos (leis dos homens) para serem mais eficientes e justos. A lei valoriza positivamente o conhecimento científico atual – seja na distinção técnica de impactos, seja no uso de novas tecnologias de gestão – e reafirma o compromisso com um meio ambiente ecologicamente equilibrado para presentes e futuras gerações.

Por fim, longe de significar um “afrouxamento” da proteção, a atualização de paradigma representa amadurecimento. Significa tratar o Direito Ambiental verdadeiramente como direito, e não mera arena de confrontos ideológicos, privilegiando debates técnicos qualificados em lugar de narrativas alarmistas. Significa reconhecer que a efetividade das normas ambientais depende de estarem sintonizadas com a realidade científica e socioeconômica do seu tempo. Assim, ao celebrar a Lei Geral do Licenciamento Ambiental como um avanço, celebra-se na verdade a capacidade do Direito Ambiental de se reinventar e continuar cumprindo sua missão fundamental: garantir um ambiente sadio e equilibrado para o ser humano e para toda a comunidade de vida, hoje e no futuro, dentro de um paradigma cada vez mais integrado, responsável e baseado na ciência.