Um debate necessário sobre urbanização, função ambiental e segurança jurídica
Introdução: O que está em jogo?
A urbanização acelerada transformou profundamente o traçado natural de muitos cursos d’água brasileiros. Em áreas urbanas densamente ocupadas, não é raro encontrarmos córregos canalizados, cobertos por galerias ou transformados em simples sistemas de drenagem pluvial.
Diante dessa realidade consolidada, surge uma questão jurídica central: essas margens ainda podem ser qualificadas como Áreas de Preservação Permanente (APP) nos termos da legislação ambiental brasileira? E mais: quando um curso d’água perde totalmente sua função ecológica, faz sentido manter essa proteção legal?
O que é APP e por que ela existe?
A Área de Preservação Permanente (APP), conforme o Código Florestal (Lei 12.651/2012), é um espaço especialmente protegido por sua função ecológica e social. Entre seus objetivos, estão:
Preservar os recursos hídricos
- Proteger o solo contra erosões
- Garantir a biodiversidade
- Assegurar o bem-estar das populações humanas
Mesmo que não exista vegetação nativa na área, a legislação protege o potencial ecológico da faixa marginal, justamente para que ela possa ser recuperada no futuro.
O que acontece nas áreas urbanas?
Nos grandes centros urbanos, muitos cursos d’água foram antropizados: canalizados, encobertos, ou transformados em galerias. Nessas situações, os trechos hídricos:
- Deixam de exercer função ecológica
- Não oferecem habitat à fauna ou flora
- Apresentam margens impermeabilizadas e concretadas
A pergunta, então, se torna inevitável: manter a classificação como APP onde não há mais ambiente natural é coerente com os princípios do Direito Ambiental?
A posição dos tribunais: entre o rigor legal e a realidade urbana
STJ e o Tema 1010: a regra geral
Em 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou, no Tema Repetitivo 1010, o entendimento de que as margens de qualquer curso d’água natural, inclusive em áreas urbanas consolidadas, devem obedecer às larguras de APP previstas no Código Florestal. A decisão prioriza a proteção ambiental, mesmo diante da consolidação urbana.
Porém, o próprio STJ admitiu, em embargos ao mesmo tema, a possibilidade teórica de descaracterização da APP em situações excepcionais — quando comprovadamente não subsiste nenhuma função ecológica e a recuperação é tecnicamente inviável.
TJSC: um caso emblemático
Tribunais estaduais têm enfrentado essa realidade de forma mais direta. No caso do Rio Francisco Róos, canalizado há décadas em Joinville/SC, o TJSC reconheceu a perda da função ambiental do curso d’água e afastou a aplicação do Código Florestal, validando a norma estadual que dispensa APP em canais artificializados.
A legislação também evoluiu: Lei 14.285/2021
Reconhecendo os desafios das áreas urbanas, a Lei 14.285/2021 trouxe uma inovação relevante: permitiu que os municípios, com base em estudos técnicos e escuta de autoridades ambientais, definam faixas de proteção diferenciadas daquelas previstas no Código Florestal.
Essa flexibilização visa conciliar a proteção ambiental com a realidade urbana, evitando injustiças como:
- Demolições em bairros históricos já consolidados
- Proibição de construção em lotes urbanos exíguos
- Exigência de recuos sem benefício ambiental concreto
Mas atenção: perda da APP não é regra — é exceção técnica
A descaracterização de uma APP não pode ser presumida. Para que a proteção deixe de existir, é preciso:
✅ Comprovar a perda total das funções ambientais
✅ Demonstrar a irreversibilidade da degradação
✅ Apresentar estudos técnicos consistentes
✅ Garantir medidas compensatórias ou mitigadoras
A descaracterização só se justifica quando há consenso técnico e jurídico de que nada mais há para proteger ou recuperar naquele trecho — o que reforça a importância de uma análise caso a caso, com base em laudos ambientais.