O Cenário de Impacto
Os Estados Unidos sempre foram um parceiro comercial estratégico para o Brasil. Em 2024, eles representaram 12% das nossas exportações totais. No entanto, o que realmente nos coloca em xeque é o fato de que cerca de 30% das exportações brasileiras para os EUA, totalizando impressionantes US$ 12,1 bilhões, provêm diretamente do agronegócio.
Essa dependência, antes uma fortaleza, agora se revela uma vulnerabilidade crítica diante de um ataque tarifário tão agressivo.
Com a imposição dessa tarifa de 50%, a projeção é de uma redução de 0,16% no PIB brasileiro. Este número, à primeira vista, pode parecer pequeno, mas em uma economia do porte da nossa, representa bilhões de reais em perdas, afetando diretamente a geração de empregos, a renda e o desenvolvimento. E o cenário pode piorar: caso o Brasil adote medidas de retaliação, a queda no PIB pode chegar a 0,41%, um golpe ainda mais duro para a nossa economia.
O impacto mais devastador, contudo, recai sobre as exportações de alimentos para o mercado norte-americano. Projeta-se uma queda de até 75% no volume exportado com a efetivação dessa tarifa. Isso significa que produtos como café em grão e carne bovina, que em 2024 tiveram volumes exportados de 453 mil toneladas e 179 mil toneladas, respectivamente, enfrentarão barreiras quase intransponíveis. Suco de laranja e açúcar, que já possuíam tarifas elevadas de 10,94% e 19,79%, respectivamente, agora se tornam praticamente inviáveis para exportação, perdendo competitividade de forma avassaladora.
A Insegurança Jurídica e a Violação das Regras do Jogo
Para além dos números, a medida americana levanta sérias questões jurídicas. A tarifa de 50% contra o Brasil viola flagrantemente as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), especialmente o princípio da nação mais favorecida. A jurisprudência da OMC já condenou medidas similares adotadas pelo governo Trump, que tentou justificar tais ações sob a exceção de segurança nacional, mas que foram consideradas abusivas. A utilização da IEEPA (Lei sobre os Poderes Econômicos em caso de Emergência Internacional) para impor essas tarifas excede os poderes legais do Executivo americano e fere a fundamental separação de poderes.
Casos anteriores, como os referentes ao “liberation day”, declararam tarifas como ilegais, e embora a decisão esteja sob apelação, o precedente é claro. Mais recentemente, o caso julgado Loper Bright v. Raimondo (2024) revogou a deferência automática a agências governamentais e exige lei clara para ações com grande impacto, fragilizando ainda mais a interpretação do governo Trump sobre a IEEPA e o uso de tarifas. Isso significa que a base legal para essa medida é, no mínimo, questionável, e abre um flanco para disputas internacionais que podem se arrastar por anos, gerando ainda mais incerteza.
O Imperativo do Replanejamento Tributário e da Reestruturação Contratual
Diante desse cenário de insegurança jurídica e de um impacto econômico tão severo, o agronegócio brasileiro não pode se dar ao luxo de esperar. É imperativo adotar medidas de mitigação imediatamente:
- Auditoria e revisão contratual: realizar auditoria de contratos de exportação e renegociar cláusulas de entrega futura, preços e volumes. Com a base econômica dos negócios alterada repentinamente, contratos firmados com margens apertadas podem tornar-se excessivamente onerosos – ensejando pedidos de revisão com base na teoria da onerosidade excessiva. Deve-se prever cláusulas de reajuste de preço (ou proteção cambial) e mecanismos de flexibilização contratual para cobrir mudanças tarifárias bruscas.
- Replanejamento tributário: revisar o uso de regimes especiais de exportação (como drawback, RECOF, Reintegra etc.) e estimar o impacto da queda nos embarques sobre esses incentivos. Muitas operações agroexportadoras contam com isenções ou créditos tributários que dependem da efetiva concretização das vendas. Com a retração ou redirecionamento de mercado prevista, será necessário readequar estruturas fiscais para não perder benefícios (ou mesmo restituir créditos indevidos).
- Reestruturação de contratos internacionais: para proteger a cadeia de suprimento, é fundamental reestruturar contratos internacionais com parceiros. Isso inclui renegociar Incoterms (p. ex. ajustar custos de frete/seguro), revisar mecanismos de hedge cambial e inserir cláusulas de hardship ou força maior que contemplem alterações tarifárias. A preparação de instrumentos jurídicos de renegociação antecipada – como acordos suplementares – é recomendada. O objetivo é preservar o equilíbrio financeiro dos negócios e evitar litígios onerosos.
- Diversificação de mercados e parcerias comerciais: buscar novos destinos para as exportações agrícolas (novos parceiros regionais ou blocos com que tenhamos Acordos Comerciais) pode atenuar parte da queda nas vendas. Embora não substitua o mercado americano de imediato, a diversificação reduz a vulnerabilidade sistêmica. Paralelamente, as empresas devem fortalecer parcerias logísticas e investir em inteligência comercial para reorientar cadeias produtivas.
- Mobilização institucional: além das ações empresariais, o setor deve pressionar por soluções coletivas – como represálias tarifárias calibradas pelo governo brasileiro, articulação internacional em foros multilaterais e negociações políticas.
Contudo, enquanto essas estratégias prospectivas tomam forma, cabe às empresas agir no âmbito interno, baseado em análises sólidas e no respaldo jurídico existente.
O “tarifaço” norte-americano é um choque inesperado, mas não é um cenário sem precedentes ou ferramentas de reação. A experiência mostra que a antecipação técnica e jurídica é fundamental. Adotar imediatamente um planejamento tributário consistente e readequar contratos comerciais internacionais são passos essenciais para mitigar perdas e preservar a competitividade das exportações brasileiras. A postura proativa – exigida tanto pela conjuntura econômica quanto pelos precedentes legais – será decisiva para que o agronegócio brasileiro supere esse momento de ruptura sem agravar ainda mais seus resultados.
Política Externa: a Necessidade de uma Postura Coletiva e Estratégica
Este momento exige uma postura firme e estratégica por parte do Brasil. Não podemos nos isolar. É fundamental que o governo brasileiro, em conjunto com as entidades representativas do agronegócio e do comércio exterior, assuma uma postura coletiva de enfrentamento do problema. Isso inclui o uso de todos os fóruns internacionais existentes, como a própria OMC, para contestar a legalidade dessa tarifa. Um esforço conjunto de negociação, com poder de barganha e de exigência do cumprimento das regras de comércio internacional exaustivamente cunhadas ao longo de décadas, é a única forma de reverter esse quadro.
Como advogados, nosso papel é alertar e guiar. O agronegócio brasileiro é resiliente, mas a magnitude desse desafio exige uma resposta à altura. A hora é de planejamento, de ação e de união para proteger um dos pilares da nossa economia. O futuro do agronegócio brasileiro depende da nossa capacidade de adaptação e da nossa firmeza em defender os nossos interesses no cenário global.
Referências:
[1] Nota Técnica: Aspectos econômicos e jurídicos – Conflito Tarifário Brasil-Estados Unidos. Julho 2025.
[2] BBC News Brasil. A reação do agronegócio, amigo de Bolsonaro, às tarifas de Trump. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cly25ylyr3jo
[3] Gazeta do Povo. Indústria e agro medem impacto de nova tarifa de Trump no Brasil. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/brasil/industria-agro-tarifa-de-trump-contra-o-brasil/
[4] CNN Brasil. Agro brasileiro pede “resposta firme e estratégica” contra tarifa de Trump. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/julliana-lopes/economia/macroeconomia/agro-brasileiro-pede-resposta-firme-e- estrategica-contra-tarifa-de-trump/
[5] O Especialista. Tarifa dos EUA: impacto no agronegócio. Disponível em: https://oespecialista.com.br/opinioes/tarifa-dos-eua-impacto-no-agronegocio/
[6] G1. Tarifaço de Trump: veja quais são os produtos que o agronegócio do Brasil mais vende para os EUA. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2025/07/09/tarifaco-de-trump-veja-quais-sao-os-produtos-que-o- agronegocio-do-brasil-mais-vende-para-os-eua.ghtml
[7] Agro em Campo. Saiba o impacto da tarifa de 50% sobre o agronegócio brasileiro. Disponível em: https://agroemcampo.ig.com.br/2025/saiba-o-impacto-da-tarifa-de-50-sobre-o- agronegocio-brasileiro/
[8] OPEB. Tarifaço de Trump ‒ consequências para o Brasil agrícola e impactos ao meio ambiente no ano da COP 30. Disponível em: https://opeb.org/2025/07/10/tarifaco-de-trump-consequencias-para-o-brasil-agricola-e- impactos-ao-meio-ambiente-no-ano-da-cop-30/
[9] Sistema FAEP. Nota Técnica | Análise do impacto da tarifa de 50% dos EUA sobre as exportações do agronegócio do Paraná. Disponível em: https://www.sistemafaep.org.br/nota-tecnica-analise-do- impacto-da-tarifa-de-50-dos-eua-sobre-as-exportacoes-do-agronegocio-do-parana/
[10] Forbes Brasil. Como as Tarifas Podem Impactar o Agronegócio dos EUA e Suas Implicações aos Investidores. Disponível em: https://forbes.com.br/forbesagro/2025/06/como-as-tarifas-podem-impactar-o-agronegocio-dos-eua-e-suas-implicacoes-aos- investidores/
[11] YouTube. FAESP alerta para impactos das tarifas dos EUA ao Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pXcJNTaKUgg
[12] Galicia Educação. Direito do Comércio Internacional e Tarifas: Guia Essencial. Disponível em: https://www.galiciaeducacao.com.br/blog/direito-do-comercio-internacional-e-tarifas-guia- essencial/
[13] Portal Gov.br. Organização Mundial do Comércio (OMC) — Siscomex. Disponível em: https://www.gov.br/siscomex/pt-br/acordos-comerciais/omc
[14] Conjur. Comércio internacional, aumento de tarifas e o papel da OMC. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-11/trump-e-o-novo-cenario-global-pode-a-omc-responder-ao- aumento-abusivo-de-tarifas/
[15] Legale. OMC e Tarifas: Impactos Jurídicos e Soluções Disputas. Disponível em: https://legale.com.br/blog/omc-e-tarifas-impactos-juridicos-e-solucoes-disputas/
[16] Gov.br. ACORDO GERAL SOBRE TARIFAS ADUANEIRAS E COMÉRCIO. Disponível em: https://www.gov.br/siscomex/pt-br/arquivos-e-imagens/2021/05/omc_gatt47.pdf
[17] Repositório ENAP. Estrutura e Principais Regras da OMC. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3095/3/Estrutura%20e%20Principais%20Regras%20da%20OMC%20%281%29.pdf
[18] Europarl. A União Europeia e a Organização Mundial do Comércio. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/161/a-uniao-europeia-e-a-organizacao-mundial-do-comercio
[19] Brasil Escola. OMC: o que é, objetivos, países, princípios. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/omc.htm
[20] Jota. OMC em crise: o vácuo jurídico da Apelação e o avanço tarifário dos EUA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e- analise/artigos/omc-em-crise-o-vacuo-juridico-da-apelacao-e-o-avanco-tarifario-dos-eua
[21] Lawinter. Organização Mundial do Comércio- OMC. Disponível em: http://www.lawinter.com/202005dfalawinter.htm