Escrito por Sidney Assis
“O que quer que façamos, assumimos responsabilidade por alguma coisa, mas não sabemos o
que essa coisa é.” (Jean-Paul Sartre)
1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Cerca de 152 milhões de brasileiros, 81% da população, utilizam a internet, segundo informações divulgadas pela pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) 1 .
Vivemos em uma sociedade cada vez mais conectada pelos inúmeros recursos tecnológicos de comunicação, como celulares, computadores, redes sociais etc. Neste cenário, o comportamento dos internautas, como não poderia ser diferente, está abarcado pelo universo jurídico no que diz respeito aos inúmeros direitos e deveres previstos em Lei.
A responsabilidade civil, conforme observar-se-á ao longo deste breve artigo, é um dentre outros institutos jurídicos aplicados ao mundo virtual.
A pretensão deste artigo, longe de esgotar toda a temática, é de lançar luz a um tema complexo e multifacetado como o da responsabilidade civil no âmbito da internet. Discutir-se-ão certas previsões legais e algumas decisões judiciais a fim de verificar como a Lei e o Judiciário têm enfrentado o problema da responsabilização dos usuários de internet pelos seus atos que causam danos materiais ou morais a pessoas.
2 RESPONSABILIDADE CIVIL
Responsabilizar, em sentido genérico, é atribuir a alguém as consequências dos seus atos, sejam eles negativos ou positivos. A ideia de atribuição perfaz o campo semântico do termo imputar. Para Ricoeur in Rosenvald (2019), “imputar uma ação a alguém é atribuí-la a esse alguém como o seu verdadeiro autor, lançá-la por assim dizer à sua conta e torná-lo responsável por ela” (RICOEUR in ROSENVALD, p. 37, 2019).
Na acepção jurídica, especificamente, no âmbito do Direito Civil, a responsabilidade diz respeito à obrigação imposta a alguém de reparar os danos causados a outrem, observando-se os pressupostos definidos tanto pela Lei quanto pelo entendimento dos Tribunais no âmbito de aplicação e interpretação desta mesma Lei.
Farias, Braga Netto e Rosenvald (2019) afirmam que o sentido clássico de responsabilidade na ótica do Direito Civil é a “obrigação de reparar danos que infringimos por nossa culpa e, em certos casos determinados pela lei; em direito penal, pela obrigação de suportar o castigo” (FARIAS, BRAGA NETO e ROSENVALD, p. 37, 2019).
Pode-se afirmar, em suma, que a responsabilidade civil é tida para o Direito como a possibilidade, mediante a verificação de um fato ou ato praticado por alguém, de atribuir a este alguém o dever de reparar eventuais danos decorrentes de sua conduta ou de um acontecimento. Não se pode olvidar que a responsabilidade civil possui uma finalidade punitiva e preventiva além da reparativa.
Assim como em outros âmbitos da vida em sociedade, também no mundo “virtual”, todos os atos praticados pelos usuários da internet são passíveis de serem responsabilizados, aplicando-se a sistemática do Código Civil de 2002 (CC/02) no campo das relações privadas ou do Código de Defesa do Consumidor (CDC) nas relações de consumo.
Segundo afirma Teixeira (2020), o problema que surge ao se buscar responsabilizar alguém civilmente pela sua conduta danosa, neste cenário dos meios eletrônicos, é exatamente a dificuldade em identificar e localizar o autor do dano para exigir-lhe a devida reparação (TEIXEIRA, 2020).
2.1 Responsabilidade civil contratual e extracontratual
No estudo da responsabilidade civil há uma clássica dicotomia entre responsabilidade civil stricto sensu (extranegocial, extracontratual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual (negocial ou obrigacional).
Farias, Braga Netto e Rosenvald (2019) direcionam o foco dessa distinção na verificação se no caso concreto o dano a ser reparado decorre de uma violação a um dever geral de cuidado, previsto no ordenamento jurídico, ou se advém de um dever jurídico fundado numa relação obrigacional proveniente de uma relação contratual estabelecida pelas partes envolvidas.
Vale citar:
Toda vez que o dano se relacione imediatamente com a violação a cláusulas contratuais ou obrigações legais especificamente relacionadas ao negócio jurídico, a responsabilidade será negocial. Todavia, mesmo havendo um vínculo contratual, se o dano decorreu da quebra de um dever geral de cuidado – imposto pelo sistema jurídico em caráter abstrato e universal –, prevalecerá o direito geral da responsabilidade civil extranegocial. (FARIAS, BRAGA NETTO, ROSENVALD, p. 101, 2019)
A denominada responsabilidade civil negocial possui embasamento legal especialmente nos artigos 389 a 420 do Código Civil de 2002. Já a responsabilidade civil extranegocial se ampara nos artigos 186, 187 e 927 do mesmo diploma legal. Dentre os dispositivos legais mencionados, vale citar:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo
Essa distinção entre responsabilidade negocial e extranegocial implica diversos efeitos próprios para cada tipo. A título de exemplificação, pode-se mencionar a ocorrência da mora. Na responsabilidade civil contratual, a mora terá início a partir do termo ajustado em contrato (art. 397, CC/02) e não havendo tal estipulação, mediante interpelação judicial ou extrajudicial (parágrafo único, art. 397, CC/02), por sua vez, os juros moratórios incidem a partir da citação (art. 405, CC/02). Em relação à responsabilidade extracontratual, a mora é presumida desde a ocorrência do evento danoso (art. 398, CC/02) e os juros moratórios correm desde a referida data (Súmula 54, STJ).
Outra diferenciação que importa ser feita se refere à comprovação do dano. No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, cabe a quem sofre os prejuízos, na qualidade de autor da ação indenizatória, demonstrar os pressupostos da obrigação de indenizar, quais sejam, o ato ilícito, a culpa, o dano e o nexo causal, sendo excluídos os dois primeiros requisitos caso se trate de responsabilidade objetiva, conforme se explanará abaixo. Lado outro, na responsabilidade contratual, a mera constatação de inadimplemento (descumprimento) acarreta automaticamente no dever de indenizar por parte do devedor, cabendo a este demonstrar que o fato causador do dano não lhe pode ser imputado a fim de desobrigar-se a reparar o dano.
2.2 Danos materiais e danos morais
O elemento dano, comum aos casos de responsabilidade extranegocial e negocial, pode ser de ordem patrimonial, isto é, prejuízos passíveis de serem mensurados monetariamente, via de regra, ou extrapatrimoniais, também denominados morais cuja aferição ultrapassa a perspectiva meramente material e atinge um patamar de valores existencialmente
relevantes para as pessoas, seja do ponto de vista da individualidade, seja na perspectiva da coletividade.
O dano material, à luz do art. 402, CC/02, classifica-se como dano emergente, i. e., a efetiva diminuição patrimonial ou prejuízo sofrido, e como lucros cessantes, aquilo que razoavelmente deixou de ser lucrado em virtude do não cumprimento da obrigação ou do evento danoso. Em ambos os casos, constatado o evento danoso, cabível se faz exigir do agente a reparação na medida do prejuízo auferido (art. 944, CC/02).
Por sua vez, merecedor de ênfase, o dano moral tem assento na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88), que em seu art. 5º prevê:
V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
No plano da legislação infraconstitucional, cabe citar o CDC e o CC/02, respectivamente:
Art. 6º, São direitos básicos do consumidor: […] VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Em precisa definição, Rosenvald (2019) caracteriza o dano moral como “uma lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela” (ROSENVALD, p. 366, 2019).
A dor, a mágoa e o abalo emocional ou psíquico seriam, nesta perspectiva, consequências naturais do dano moral em si, sendo, por isso, dispensável comprová-los, mas necessário se faz demonstrar a violação a determinado interesse ontológico merecedor de tutela. Numa exemplificação, Rosenvald (2019) afirma que para se verificar a ocorrência de um dano à intimidade não seria relevante mensurar se o ofendido se sentiu deprimido a ponto de ter que se medicar, mas o importante seria aferir de forma objetiva e concreta o ato supostamente violador da intimidade.
Esta definição se amolda a uma reação capitaneada por várias decisões judiciais e por parte dos juristas brasileiros à banalização deste instituto. Vale destacar que, não raro, demandas judiciais são propostas de forma temerária, especialmente contra pessoas jurídicas ou fornecedores de produtos e serviços no âmbito das relações de consumo por sujeitos processuais que almejam mero enriquecimento sob o pálio do dano moral.
Pode-se afirmar que a jurisprudência pátria tem considerado como interesse concretamente merecedor de tutela que em sendo violado justifica a responsabilização civil por danos morais os direitos da personalidade ou os direitos fundamentais do ofendido. Vale citar:
sempre que demonstrada a ocorrência de ofensa injusta à dignidade da pessoa humana, dispensa-se a comprovação de dor e sofrimento para configuração de dano moral. Segundo doutrina e jurisprudência do STJ, onde se vislumbra a
violação de um direito fundamental, assim eleito pela CF, também se alcançará, por consequência, uma inevitável violação da dignidade do ser humano. A compensação nesse caso independe da demonstração da dor, traduzindo-se, pois, em consequência in re ipsa, intrínseca à própria conduta que injustamente atinja a dignidade do ser humano. Aliás, cumpre ressaltar que essas sensações (dor e sofrimento), que costumeiramente estão atreladas à experiência das vítimas de danos morais, não se traduzem no próprio dano, mas têm nele sua causa direta.(STJ, Informativo n. 513, 6 de março de 2013, 3a Turma, REsp 1.292.141-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi).
É certo que, ressalvadas as devidas críticas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal responsável por uniformizar a interpretação da legislação federal, entende haver situações nas quais uma vez demonstrado o fato danoso, o dano moral é presumido (in re ipsa). Neste sentido, cita-se: “Consoante o entendimento desta Corte, a inscrição indevida em cadastro negativo de crédito caracteriza, por si só, dano in re ipsa, o que implica responsabilização por danos morais” (AgInt no AREsp 1815618/AL, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 29/11/2021, DJe 01/12/2021).
2.3 Responsabilidade civil objetiva e subjetiva
Na hipótese de responsabilidade civil contratual, mencionada anteriormente, o inadimplemento de uma obrigação assumida em sede de negócio jurídico (contrato) caracteriza o ilícito contratual em que a culpa do agente infrator é presumida e as consequências são o dever de reparar as perdas e danos, arcar com os juros ou outras penalidades acordadas (cláusulas penais ou arras).
Em se tratando de responsabilidade civil extracontratual, para que surja o dever de indenizar, é indispensável a presença cumulativa dos requisitos previstos em Lei, quais sejam: 1) a conduta do agente contrária ao ordenamento jurídico (ato ilícito); 2) a culpa lato sensu (dolo ou a culpa caracterizada pela imprudência, negligência e imperícia); 3) o dano (patrimonial ou extrapatrimonial); 4) nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Tais requisitos se amoldam à denominada teoria subjetiva da responsabilidade civil advinda da prática de um ilícito. É tida como subjetiva, pois o aspecto da ilicitude do ato e da culpa ganham um relevo para se concluir pela ocorrência ou não do dever de reparar o dano. Lado outro, na perspectiva da teoria objetiva, a obrigação de indenizar não pressupõe a prática de um ato ilícito e de culpa lato sensu, estes aspectos são irrelevantes, podendo ou não ocorrerem. Importa apenas observar os fatores denominados risco da atividade, nexo causal e dano.
Cabe, neste ponto, suscinta explanação sobre o ato ilícito e a culpa, elementos diferenciadores das responsabilidades subjetiva e objetiva. O ato ilícito, por definição, é um acontecimento ou um comportamento praticado e imputável a alguém e que é contrário ao ordenamento jurídico vigente.
Vale citar que o ato ilícito é “todo fato, conduta ou evento, contrário a direito que seja imputável a alguém com capacidade delitual (de praticar ato ilícito)” (MELLO in ROSENVALD, p. 189, 2017).
O Código Civil de 2002, em seu art. 186, apresentou a seguinte concepção de ato ilícito:
Art. 186 Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Essa perspectiva apresentada pela Lei Civil pode ser compreendida como uma cláusula geral de ilicitude culposa.
Segundo Rosenvald (2019), além da noção de ilícito como resultante dos elementos antijuricidade e imputabilidade, o Código Civil acrescentou os aspectos da culpa, dano e nexo causal, resultando na obrigação de indenizar.
[…] o ilícito indenizatório – ou ilícito civil stricto sensu – refere-se a toda e qualquer conduta (comissiva ou omissiva), culposa, praticada por pessoa imputável que, violando um dever jurídico (imposto pelo ordenamento jurídico ou por uma relação negocial), cause prejuízo a outrem, implicando efeitos jurídicos. (ROSENVALD, p. 210, 2019).
O direito de exigir a responsabilização de quem gerou um dano e a consequente indenização pressupõe, conforme já afirmado, a constatação de culpa por parte do autor do prejuízo, ao menos no âmbito da responsabilidade subjetiva.
A culpa, dessa forma, pode ser caracterizada pelo aspecto doloso, agir voluntário e consciente destinado a um fim ilícito, ou pelo aspecto culposo, conduta pautada na imprudência, negligência ou imperícia sem que haja para tanto a intenção direcionada em causar o prejuízo. Há muito, o conceito de culpa foi desenvolvido a partir de um critério subjetivo em
que importava verificar as predisposições psicológicas da conduta do agente, sua intencionalidade ou sua subjetividade (ROSENVALD, 2019).
Todavia, progressivamente, tal perspectiva ética e moral foi cedendo espaço a uma construção conceitual objetiva de culpa. Com isso, basta aferir se o autor do dano deixou de observar uma regra de conduta ou diligência preestabelecidas por meio de parâmetros sociais ou profissionais de conduta. Vale citar:
Não se trata de atingir um comportamento psicologicamente culposo, mas de reagir a um ato objetivamente disforme a um padrão de conduta diligente, um agir no qual se infere um rebaixamento de certo nível comportamental. O sujeito que possui um comportamento disforme a esses cânones será responsabilizado, mesmo que tenha feito o máximo para evitar o dano. Convenhamos que o recurso à culpa normativa facilita sobremaneira a sua identificação, em comparação com o angustiante reconhecimento de uma falta moral do agente. (ROSENVALD, p. 238, 2019).
Por fim, cumpre citar alguns casos em que a obrigação de indenizar é objetiva.
* Art. 931, CC/02: “Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”;
* Responsabilidade civil por atos de terceiros, como atos de incapazes e empregados – art. 933, CC/02: “As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”;
*Responsabilidade civil pelo fato da coisa animal – art. 936, CC/02: “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”;
*Responsabilidade pela queda de prédio – art. 937, CC/02: “O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta”;
*Responsabilidade pelo fato da coisa inanimada – art. 938, CC/02: “Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido”;
*Responsabilidade do transportador – art. 734: “O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”.
*Responsabilidade civil por danos causados a consumidor também é objetiva. Prevê o art. 14 do CDC: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas
sobre sua fruição e riscos”. Cabe mencionar as hipóteses em que o fornecedor poderá alegar a impossibilidade de ser responsabilizado: art. 14, § 3°, CDC: “O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro;
*”Na forma da jurisprudência do STJ, ‘nos termos do art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981, a responsabilidade civil pelo dano ambiental tem natureza objetiva, solidária e ilimitada, lastreada na teoria do risco integral’ […] (REsp 1902152/RO, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/03/2021, DJe 09/04/2021).
3 RESPONSABILIDADE CIVIL NA INTERNET
Após suscinto estudo sobre alguns dos principais aspectos da responsabilidade civil, analisar-se-á, a seguir, como este instituto é aplicado no âmbito da internet, ressaltando-se algumas das disposições legais afetas a este tema, bem como as decisões judiciais de maior relevância.
A princípio, cumpre elucidar que as normas previstas no Código de Defesa do Consumidor se aplicam nos negócios jurídicos praticados por meio do comércio eletrônico. Nos termos do art. 14 e 18 do CDC, os fornecedores de produtos e serviços pela internet respondem de forma objetiva (sem que seja relevante a verificação da ilicitude e culpa) pelos danos causados aos consumidores com os quais mantêm relação comercial.
Farias, Braga Netto e Rosenvald (2019) afirmam que se, por exemplo, em razão de uma falha na criptografia, os dados de determinado consumidor repassados ao fornecedor por meio eletrônico forem capturados e utilizados por terceiros para a prática de fraudes, este será responsabilizado objetivamente pelos danos causados.
Mesmo no comércio eletrônico, todos que participam da cadeia de fornecimento de produtos e serviços respondem solidariamente (em conjunto) pelos defeitos ou vícios constatados (art. 7º, parágrafo único, 18, 19, 25, § 1º e 34, CDC).
Além disso, os fornecedores que comercializam produtos pela internet e celebram contratos de adesão online são proibidos de incluírem cláusulas que excluam ou atenuam suas responsabilidades, conforme deixa claro o art. 25 do CDC.
O STJ já proferiu várias decisões acerca da responsabilidade civil dos usuários de internet que valem a pena serem mencionadas para complementar o estudo do presente tema. Empresas que atuam como mediadoras de negócio, a exemplo o Mercado Livre, são responsabilizadas objetivamente pelos danos decorrentes de falhas em seus sistemas digitais (STJ, REsp 1.107.024, rel. Min. Isabel Gallotti, 4ª Turma, DJ 14-12-2011).
Outra decisão interessante do STJ foi a de que todos os envolvidos na cadeia de consumo, nos casos de anúncio falso publicado na internet em sites especializados, respondem solidariamente pelos danos causados à honra de determinada pessoa (STJ, REsp 997.993, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJ 6-8-2012).
Cabem, neste ponto, alguns esclarecimentos sobre o que vem a ser um provedor de internet e a forma como pode ser responsalizado civilmente.
Provedores de internet são responsáveis por viabilizar a conexão entre o usuário e a rede mundial de computadores, isto é, a internet. Basicamente, eles oferecem conexão à internet, mas vários possuem função dúplice: 1) oferecer conexão à internet; 2) oferecer conteúdo (mensagens, sites, blogs, redes sociais etc.). Em resumo:
Provedor de serviços de internet é um gênero do qual são espécies: provedor de backbone, provedor de acesso, provedor de correio eletrônico, provedor de hospedagem e provedor de conteúdo. […] Apenas no que tange ao provedor de conteúdo, vale a pena relembrarmos que se trata daquele que disponibiliza informações na internet obtidas por meios próprios ou de terceiros, ou seja, explora os meios de informações ou de divulgação. (TEIXEIRA, p. 170, 2020).
Dito isso, nos casos de compras virtuais, o STJ já decidiu que o provedor que não atua como intermediador entre consumidor e vendedor não é responsável pelos vícios ou eventuais inadimplementos contratuais (STJ, REsp 1.444.008, rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., DJ 9-11-2016).
Em boa síntese, importa citar:
*Uma coisa são os provedores de serviço que, além de oferecerem o serviço de buscas de mercadorias, fornecem a estrutura virtual para a realização da compra (nesse caso, passam a fazer parte da cadeia de fornecimento, de modo solidário);
* Outra situação, bem distinta, é aquela em que o prestador de busca de produtos se limita a apresentar ao consumidor o resultado da busca, após o que o consumidor é direcionado ao site do vendedor do produto (não haverá, nessa situação, responsabilidade solidária do site que ofereceu os resultados da busca) (ROSENVALD, p. 940, 2019).
Outras decisões relevantes acerca dos provedores de internet proferidas pelo STJ que merecem destaque são as seguintes:
*Os provedores de internet, que prestam serviços em que os usuários possam postar suas opiniões livremente, não são obrigados a fiscalizar previamente o conteúdo divulgado (STJ, REsp 1.192.208, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJ 2-8-2012). Todavia, ao ser informado que determinado conteúdo é ilícito, precisa agir rapidamente para inibir a ilicitude. O STJ já entendeu que o provedor precisa retirar páginas ou conteúdo ofensivo do ar em até 24h, sob pena de responder solidariamente com o autor do dano (STJ, REsp 1.323.754, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 19-6-2012).
*O STJ em 2017 afirmou que cabe ao ofendido e não ao provedor de internet informar precisamente quais mensagens e o endereço eletrônico (URL) de localização a fim de viabilizar o cumprimento da decisão judicial que determinar a retirada do conteúdo (STJ, REsp 1.629.255, rel. Min. Nancy Andrighi, 3a Turma, DJ 25-8-2017).
* “Não é possível impor a provedores de aplicações de pesquisa na internet o ônus de instalar filtros ou criar mecanismos para eliminar de seu sistema a exibição de resultados de links contendo o documento supostamente ofensivo (REsp 1.593.249-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 23/11/2021).
*”Os provedores de pesquisa não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados da busca de determinado termo ou expressão” (AgInt no REsp 1.593.873/SP, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe de 17/11/2016).
* “Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança de e pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1o, da CF/88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa” (STJ, REsp 1.407.271, rel. Min. Nancy Andrighi, 3a Turma, DJ 29-11-2013).
*“Ao oferecer um serviço de provedoria de conteúdo, deve o fornecedor obter e manter dados mínimos de identificação de seus usuários, com vistas a assegurar a eventuais prejudicados pela utilização indevida ou abusiva do serviço – consumidores por equiparação nos termos do art. 17 do CDC – informações concretas sobre a autoria do ilícito”. Adiante, completou: “Cuida-se de cautela básica, decorrente da legítima expectativa do consumidor – mesmo aquele que jamais tenha feito uso do serviço – de que, sendo ofendido por intermédio de um site, o seu provedor tenha condições de individualizar o usuário responsável.” (STJ, REsp 1.398.985, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma).
É mister ressaltar que mesmo em não se tratando de relação de consumo, uma vez constatada a ocorrência de um dano em virtude de um ato praticado na internet, como por exemplo, a postagem de uma mensagem ofensiva nas redes sociais, aplicar-se-á a responsabilidade civil a fim de se exigir a reparação pelo dano causado. Diante disso, percebe-se que o Judiciário e o Poder Legislativo têm buscado acompanhar os diversos e complexos avanços ocorridos na sociedade em função do uso internet e suas funcionalidades. No âmbito da responsabilidade civil, os danos deflagrados pelos internautas precisam ser, nos limites da Lei, apurados e devidamente ressarcidos a fim de, inclusive, inibir práticas semelhantes.
O Marco Civil da Internet, Lei n. publicada 24 de abril de 2014, foi um significativo avanço no enfrentamento aos problemas sociais surgidos com o uso da internet no Brasil, especialmente os de responsabilidade civil. Esta legislação traçou princípios, garantias, direitos e deveres para os usuários da internet, viabilizando, dessa forma, a responsabilização dos internautas pelos seus atos danos praticados no “mundo virtual”.
4 NOTAS FINAIS
Conclui-se, após esta breve explanação, que desde os atos praticados individualmente pelos internautas na internet por meio de postagens, comentários, fotos, vídeos, dentre outros, até os mais diversos tipos de negócios celebrados de forma virtual, como nas relações de consumo, a ocorrência de eventual dano de ordem material ou moral pode gerar, via de consequência, o dever de indenizar por meio da aplicação do instituo da responsabilidade civil.
REFERÊNCIAS
FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. E-book.
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2017 E-book.
TEIXEIRA, Tarcísio. Direito digital e processo eletrônico proteção de dados, inteligência artificial, Internet das coisas, novos meios de pagamento digitais, moedas digitais e bitcoin, WhatsApp e criptografia ponto a ponto, compartilhamento de Wi-Fi: riscos, direito ao esquecimento e herança digital, modelos de termos de uso e política de privacidade. 5. São Paulo Saraiva 2020 1 recurso online