Carolina Pedrol

No intuito de readequação do cotidiano, tanto do Judiciário, quanto do setor administrativo, com tantas medidas inovadoras trazidas durante a escalada mundial do coronavírus, SARS-CoV-2, duas delas, em especial, favoreceram as pessoas mais vulneráveis, no que diz respeito à moradia e à saúde, quais sejam: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828 e a Lei 14.216/2021.

Num primeiro momento, a decisão prolatada em 03 de junho de 2021 na ADPF n°. 828, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, obstou principalmente os atos de despejo, desocupações e remoções forçadas e, depois, para legalizar tal decisão, sobreveio a Lei n°. 14.216, de 07 de outubro de 2.021,
tratando do assunto e protegendo a moradia, pois era peça fundamental para o isolamento social.

Vejamos:

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. TUTELA DO DIREITO À MORADIA E À SAÚDE DE PESSOAS VULNERÁVEIS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19. MEDIDA PARCIALMENTE DEFERIDA. I. A hipótese 1. CAUTELAR Ação que tem por objeto a tutela dos direitos à moradia e à saúde de pessoas em situação de vulnerabilidade. Pedido cautelar de suspensão imediata de todos os processos, procedimentos, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse enquanto perdurarem os efeitos da crise sanitária da COVID-19. II. Fundamentos de fato 2. O requerente destaca dados da Campanha Despejo Zero, segundo a qual mais de 9.000 (nove mil) famílias foram despejadas durante a pandemia e em torno de 64.000 (sessenta e quatro mil) se encontram ameaçadas de remoção. Noticia de casos de desocupações coletivas realizadas sem suporte assistencial às populações, que já se encontravam em situação de vulnerabilidade. III. Fundamentos jurídicos 3. No contexto da pandemia da COVID-19, o direito social à moradia (art. 6º, CF) está diretamente relacionado à proteção da saúde (art. 196, CF), tendo em vista que a habitação é essencial para o isolamento social, principal mecanismo de contenção do vírus. A recomendação das autoridades sanitárias internacionais é de que as pessoas fiquem em casa. 4. Diante dessa situação excepcional, os direitos de propriedade, possessórios e fundiários precisam ser ponderados com a proteção da vida e da saúde das populações vulneráveis, dos agentes públicos envolvidos nas remoções e também com os riscos de incremento da contaminação para a população em geral. 5. É preciso distinguir três situações: (i) ocupações antigas, anteriores à pandemia; (ii) ocupações recentes, posteriores à pandemia; e (iii) despejo liminar de famílias vulneráveis. Também merecem solução específica: a) ocupações conduzidas por facções criminosas; e b) invasões de terras indígenas. IV. Decisão quanto a ocupações anteriores à pandemia 6. Justifica-se a suspensão, por 6 (seis) meses, da remoção de ocupações coletivas instaladas antes do início da pandemia. Trata-se da proteção de comunidades estabelecidas há tempo razoável, em que diversas famílias fixaram suas casas, devendo-se aguardar a normalização da crise sanitária para se cogitar do deslocamento dessas pessoas. V. Decisão quanto a ocupações posteriores à pandemia 7. Os agentes estatais poderão agir para evitar a consolidação de novas ocupações irregulares, desde que com a devida realocação em abrigos públicos ou em locais com condições dignas. Tudo deve ser feito com o cuidado necessário para o apoio às pessoas vulneráveis, inclusive provendo condições de manutenção do isolamento social. VI. Decisão quanto ao despejo liminar por falta de pagamento 8. No que diz respeito às situações de despejo por falta de pagamento de aluguel, a proibição genérica pode gerar efeitos sistêmicos difíceis de calcular em sede de controle concentrado de constitucionalidade, particularmente em medida cautelar de urgência. Isso porque a renda proveniente de locações, em muitos casos, também é vital para o sustento de locadores. Por essa razão, nesse tópico, a intervenção judicial deve ser minimalista. 9. Assim sendo, na linha do que já fora previsto na Lei nº 14.010/2020, que disciplinou o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus, suspendo, pelo prazo de 6 (seis) meses, tão-somente a possibilidade de despejo liminar de pessoas vulneráveis, sem a audiência da parte contrária. Não fica afastada, portanto, a possibilidade de despejo por falta de pagamento, com observância do art. 62 e segs. da Lei nº 8.245/1991, que dispõe sobre a locação de imóveis urbanos. VII. Conclusão 1. Ante o quadro, defiro parcialmente a medida cautelar para: i) com relação a ocupações anteriores à pandemia: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública (Decreto Legislativo nº 6/2020); ii) com relação a ocupações posteriores à pandemia: com relação às ocupações ocorridas após o marco temporal de 20 de março de 2020, referido acima, que sirvam de moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada; eiii) com relação ao despejo liminar: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º, da Lei nº 8.425/1991), nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável, mantida a possibilidade da ação de despejo por falta de pagamento, com observância do rito normal e contraditório. 2. Ficam ressalvadas da abrangência da presente cautelar as seguintes hipóteses: i) ocupações situadas em áreas de risco, suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, inundações ou processos correlatos, mesmo que sejam anteriores ao estado de calamidade pública, nas quais a remoção poderá acontecer, respeitados os termos do art. 3º-B da Lei federal nº 12.340/2010; ii) situações em que a desocupação se mostre absolutamente necessária para o combate ao crime organizado – a exemplo de complexos habitacionais invadidos e dominados por facções criminosas – nas quais deve ser assegurada a realocação de pessoas vulneráveis que não estejam envolvidas na prática dos delitos; iii) a possibilidade de desintrusão de invasores em terras indígenas; e iv) posições jurídicas que tenham por fundamento leis locais mais favoráveis à tutela do direito à moradia, desde que compatíveis com a Constituição, e decisões judiciais anteriores que confiram maior grau de proteção a grupos vulneráveis específicos, casos em que a medida mais protetiva prevalece sobre a presente decisão (ADPF 828, Rel. Min. Luis Roberto Barroso, 03.06.2021).

Foi observado neste novo contexto da pandemia da COVID-19, que o direito social à moradia, previsto no artigo 6º, da Constituição Federal de 1988, está diretamente relacionado à proteção da saúde, previsto no artigo 196, da Constituição Federal de 1988, tendo em vista que a habitação é essencial para o isolamento social – mantido por longos períodos no decorrer dos anos de 2020 e 2021, tendo sido o principal mecanismo de contenção do vírus.

Diante dessa situação excepcional, os direitos de propriedade, possessórios e fundiários precisaram ser ponderados com a proteção da vida e da saúde das populações vulneráveis e dos agentes públicos envolvidos nas remoções.

Conforme se denota de suas especificações, a Lei n°. 14.216/2.021 estabeleceu medidas excepcionais em razão da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) decorrente da infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2, para:

  1. Suspender o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em desocupação ou remoção forçada coletiva, em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano;
  2. Conceder liminar em ação de despejo de que trata a Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991;
  3. Estimular a celebração de acordos nas relações locatícias. De outro lado, as medidas de que tratam os artigos 2º e 3º da Lei n°. 14.216/2.021 não se aplicam a ocupações ocorridas após 31 de março de 2021 (artigo 7°, inciso I) e não alcançam as desocupações já perfectibilizadas na data da publicação da Lei (artigo 7°, inciso II).

No entanto, as referidas medidas previstas na lei possuem um prazo determinado e suspendem somente até 31/12/2021 os efeitos de atos ou decisões judiciais, extrajudiciais ou administrativos, editados ou proferidos desde a vigência do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, até 1 (um) ano após o seu término, que imponham a desocupação ou a remoção forçada coletiva de imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, que sirva de moradia ou que represente área produtiva pelo trabalho individual ou familiar.

Diante disso, em atenção ao princípio da precaução, se recomendou que a suspensão das ordens de despejo e desocupação fosse prorrogada por mais um período, buscando tão somente minimizar os impactos socioeconômicos da pandemia, enquanto ela ainda está em curso e, caso o legislador não consiga prorrogar a vigência dos prazos previstos na Lei
nº 14.216/2021 (arts. 1º; 2º; 4º e 5º), tendo em vista o cenário da pandemia, foi concedida a medida cautelar na ADPF 828 (decisão pulicada em 03/12/2021), para que os direitos assegurados pela Lei nº 14.216/2021 sigam vigentes até 31 de março de 2022.

Contudo, apesar do brilhantismo social da lei, houve uma omissão por parte do legislador no tocante às áreas rurais, uma vez que, nas palavras do Min. Barroso, “não existe critério razoável para proteger pessoas vulneráveis que habitam áreas urbanas e não proteger aquelas que se encontram em áreas rurais”.

Por isso, além da prorrogação da vigência dos efeitos da Lei n°. 14.216/2021, o Min. Barroso determinou a extensão, para as áreas rurais, da suspensão temporária de desocupações e despejos, no bojo da ADPF nº 828 MC/DF, justificando o fato de que “a lei realizou uma distinção irrazoável entre as populações vulneráveis situadas na cidade e no campo. Trata-se, portanto, de uma avaliação a respeito da compatibilidade da norma com a Constituição, com relação à qual se identifica a adoção de critério de proteção insuficiente”. Todo esse aparato jurisprudencial e legislativo trouxe reforço, principalmente nos pedidos de suspensão dos efeitos nas ações de despejo, desocupações e remoções forçadas, pois nem todos os magistrados estão aplicando em suas decisões tais condicionantes, restando ao advogado o papel de defender os interesses dos mais vulneráveis, bem como de todos os que têm esse direito garantido, pelo menos até 31/03/2022.

A recentíssima decisão do Min. Barroso, publicada em 03 de dezembro de 2021, que prorrogou a decisão anterior e os efeitos da Lei nº. 14.216/2021 pode ser encontrada no site do Supremo Tribunal Federal – STF, através da pesquisa pela ADPF 828 TPI.